sábado, 27 de janeiro de 2018

Pela manhã

Se neblina sinto impulso de afogar-me na baía
sentir-me junto aos que vieram antes de mim a essas águas
assolapados pelos sentimentos implacáveis do mundo

Mas se se dissipa o véu sob a água,reina uma luz
ainda desbotada, morna, que acende frente aos meus olhos
a imagem replicada mil milhoes de vezes de mim mesmo

E passo a me ver nas esquinas e lojas,
construções, favelas e alagados
incontaveis toques sincrônicos de marcha
que reintegram meu ser desenganado ao mundo

Será então que a solidão morreu em mim,
ou eu que nasci de novo em solidão tão comum que nem percebo?

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

A ilha

Pobres os que os gritos emergem das aguas
O sol castiga os homens e depois a noite
uma melancolia escura boia no horizonte
e o descansar dos passaros, o cair das folhas

Tudo que desabrochou um dia finda por perecer
em troca de um silencio ruidoso vindo do mar
que infecta o ar acabrunhado da ilha
com a marisia podre, mas sedutora, da baía

e todo fim de tarde atravessar a ponte do medo
da incerteza, e dar novamente naquela ilha
há muito reclamada pelos velhos chefes do velho estado da guanabara
e hoje um amontoado qualquer de prédios e um povo nauseado pelo mar.

Todos os dias nos corredores impassiveis daquele velho prédio
Esperando que o imponderável possa ressurgir do caos daquele leito cético.

Todos os dias, finalmente, vencer o temor da noite
voltar pela mesma ponte e novamente se assombrar
pelos mesmos gritos que emergem da baia e
que um dia foram deixados pra trás por outros como eu.

sábado, 16 de setembro de 2017

Etérea

estou viciado naquela tez preta
que é tão preta que pode
pintar toda noite sozinha
que pode, subitamente,
sugar-me para outra dimensão
com aquele buraco negro
que me abraça como uma pequena morte.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

breu

no céu só uma banda de lua
como um seio de mulher jovem

na terra
igrejas imitam shoppings
shoppings parecem  bairros
manchando a paisagem nua

pequenas nuvens insinuam quadris
uma banda de bunda suaviza o horizonte

letreiros vermelhos e azuis
olhos cerrados por princípio
fumaça de maconha e tiner
e um sinal dizendo "vá"

a noite tenta imitar aquela pele
e quando acerta
queima como o sol
e tanto quanto queima
é intensa
treva e misteriosa

se veste as vezes
se neblina ou chove
faz saber que é melhor nua

preta e prada não se conjuga
quando vamos ao que importa

símbolos perdem o significado se
desço as curvas exageradas a toda
e sem freio mergulho desesperado
no rio salgado entre aquelas coxas

um grito desvairado que rasga o tecido da noite
uma contradição, um descuido
uma morte sem corpo, sem provas, sem epígrafe
tão magnífica que não cabe no poema

lisa e reluzente desvanece em minha boca
derrete como manteiga em meu rosto quente
se abro os olhos ela é enorme como o céu
e me cabe inteiro

nessas horas sou um poeta sem registros
fazendo obras primas instantâneas que deixam
cheiro no ar e saudade na boca

se eu tivesse papel descreveria melhor
minha ânsia de foder com as estrelas.

sábado, 9 de setembro de 2017

tô fumando pra caralho

manhã não vem 
um gato dá bola nas costas 
de um cachorro velho 
a fumaça sobe aos ceus cética

frio pra caralho e
nenhum par de coxas
pra se aconchegar
nenhum gole de conhaque
pra me comover

portão batendo rua afora
uma pobre coitada vai trabalhar
não sei se volta
e se voltar
volta menos

ela precisa de espaço
isso não cabe aqui

pra esse poema 
não sonho grande
não me fará rico
nem falado entre
os pequenos burgueses de esquerda

talvez me renda uns goles 
num sarau tosco de praça
uma salva falsa de palmas
um par de pernas pra se enroscar
(um par de chifres nos córneos de alguem)
um maço de cigarros baratos
um quê de patético
e unusual

quem sabe
faça a pobre coitada voltar
lembrada que precisa dormir. 

domingo, 27 de agosto de 2017

desvio ideológico

o ultimo jornal da noite sempre
me faz dormir preocupado
mas hoje, as palavras neblinam
e o papel é sinuoso para percorrer.

as vezes, de olhos fechados,
entro pela cozinha amarela,
a fechadura reclama da porta,
a garrafa de café sempre vazia à mesa.

antes seguia um vulto até o quarto
onde o amor me queimava como o inferno
agora paro na salinha clara,
interrompo a luz empoeirada,
coração batendo penoso,
não avanço ao próximo cômodo
apenas sinto o silêncio.

abrir os olhos para engolir o sonho,
conhaque para engolir a realidade,
filtro vermelho para engolir a dose.
a tosse é engolida pelo soluço.

levantar-se no domingo pela manhã
ir a reuniões, usar jargões, beber café.
odiar o presidente, temê-lo.
odiar o Pentágono, a direita venezuelana
sentir o sentimento do mundo
e me sentir patético pela última noite.

os discursos se inflamam
enquanto na minha cabeça
neblina.

"cozinha amarela neoliberal"
"luta de classes na salinha clara"
"piquete silencioso no quarto"
"coração penoso que bate colonizado"

um cínico desvio ideológico
no meio da análise de conjuntura.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Alagoas

pequeno montinho de terra
entretanto
monumental.

vence na marra terra adentro
os limites áridos de Pernambuco
guarda a serra em que o espírito revolucionário
de meus antepassados repousa
e é tudo que sei de ti.

guardas também uns pescadores, umas senhoras
com as rugas do sol gigante dessa terra
aboios, toadas, cavalhadas e socorros
pés que se arrastam na terra
de dia na lida
e a noite
num afluente caótico e moreno de amor.

aprendi a te querer pelas curvas
que tua alma desenha na minha
quero tocar teu chão macio com todos os meus poros
ir fundo em ti
que tuas curvas
e cicatrizes
me cabem inteiro.

olhas o horizonte sedento do atlântico e vence
vês a terra seca matar tudo o que se planta e vence
combates contra a dor como quem combate a morte,
mexes nas feridas abertas como teus rios e vence
resiste contra o latifúndio
que mancha tua perspectiva bucólica
e vence

e vencendo
avança.

Alagoas, alagoana
das imagens que por hora me ocorrem em poesia
do cheiro de infância que vem a boca
da saudade que me invade as terras baixas fluminenses
onde também vive o brasil brasileiro
que aprendeste a amar como a mim.

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

o anti-amor romântico

vim escrever minha ode ao ódio
por que o amor nada me deu no teatro municipal
nem na praça paris ou na pedra do arpoador
o amor na verdade
tem me tirado o balançar sonolento na linha irregular de Deodoro
metido abelhas em meus ouvidos
ferroadas em meus pensamentos.

por isso a ode ao ódio deve ser feita
assim não me decepciono mais
com as pernas que sem mais
se fecham a minha frente
dou as costas a elas antes
tão mais de repente
que faço-as parecer ridículas
e tão inúteis quanto as minhas
quando paralisadas pela mágoa.

e assim faço-os parecer ridículos também
os alvarez de azevedos e os vinícius de moraes
e os convenientes drummonds
que tenho em estima
mas que têm me feito beber muito conhaque.

má fase

pela minha caneta
ultimamente
corre um rio
de pressa e vazio
um rio de lugares
comuns

ei de transformá-lo em poesia.

Fogo no engenho

giroflex ilumina
minha face hedionda
capataz esquentando
o chicote hediondo

sinhôzinho prepara
solução hedionda
e eu só sei planejar
meu crime hediondo

negro em fuga na mata
mata revolucionária
matei a voz reacionária
botei fogo no engenho

na barriga tem uma serra
serra da barriga cheia
tem justiça no alguidar
liberdade na candeia