sexta-feira, 17 de março de 2017

terça-feira à tarde

precisava chorar,
beber e chorar
a noite.

profanar o silêncio
da rua em vigília

tomar um mal caminho,
cair numa poça,
escrever um samba,
pra ganhar uma moça.

mas não tenho dinheiro
não tenho lágrimas
e a noite demora.

o silêncio
os carros matam
impunemente.

já não há escolha
nem chuva, nem samba,
nem vaidade.

só há o vazio,
as letras vazias
as mãos vazias
sem melodia

cheias de saudade.

quarta-feira, 8 de março de 2017

Antologia

de tudo que escorre daqui para fora
não há uma lágrima que se limite,
não há um limite que se preserve,

não há uma rima que não se quebre.
o verso ecoa no inconsciente antes
de alcançar a sublime existência.

é o abstrato que se mistura e me intriga,
me incomoda como vidro na carne,
toca no cerne dos sentimentos do homem,

traduz-se inconsequente no papel,
vira torrente e deságua no mar da beleza.
triste como toda beleza, se objetifica

nas entranhas do medo, da dor, do amor
e da arte, vai a morte para se embeber,
volta a vida para a simular, há muito a aprendia.

caminhava de olhos baixos, mãos inúteis
na chuva que me rendia em ruas turvas,
mercadorias se ofertavam ao meu engenho

enganadas de que eu havia de comprá-las,
enquanto a coisa me encontrou indefeso,
versou briosa sobre as veias da verdade

desmanchando os edifícios mais soberbos,
desmentindo o concreto ante meus olhos,
desvendando a miudeza de cada máquina

revelando-me as empreitadas engenhosas
que se escondem nas pequenas telas de mão,
senti-me deverás amedrontado, sem fuga,

face a face que massacrava minhas certezas
e a poesia que me convidava indecorosa
desdenhando de indecifráveis cordilheiras.

fustigado pela veemência das montanhas
que se avolumavam antes de se desfazer
no silêncio que a verdade impõe ao mundo.

voltei a ver o riso que habita treze de outubro
oculto no soluçar pungente de outras datas.
numa convicção tão tênue, mas perene,

voltei a pele que habito desde então
sob o rigor do céu que vi fundando tudo
num afluente de palavras que me jorram

pelos dedos que outrora foram inúteis,
e a verdade transitória que me arrasta
nasce íntegra a cada passo do poeta.

sob a chuva que me rende em noite triste
sou a ponte da premissa atemporal
preso ao tempo desta quadra da história.

e espero a coisa me tomar em novo assalto
impelindo-me sem colóquio a um poema
como espera o atirador pela névoa rosa

nasci de novo em um surto escatológico
quando aceitei tal acepção escandalosa:
"as palavras são a antologia dos homens".

quinta-feira, 2 de março de 2017

samba-canção

preciso partir, não sei
não mando em minhas pernas
nem no meu coração

digo que vou, meu bem
vou subir as pedras
vou procurar razão

só vou levar teus cigarros
e o meu violão
sentar-me em botecos baratos
tratando com a solidão

pois do amor vivi mal
pro amor vivi em vão.

vou me levar, meu bem
subir o morro infeliz
com os olhos presos no chão

vou te levar também
pois não sei me navegar
quem me navega é o coração.

só quero o sabor dos cigarros
e o bojo do meu violão
mas no morro não tem mais fumo
e não se canta mais samba-canção.

quarta-feira, 1 de março de 2017

Cinzas

o ar se move carinhosamente entre meus dedos
lá fora se configura um melancólico outono
foliões ignoram a tristeza e lotam as ruas
aqui dentro os dissabores se dissolvem no café

enquanto caminhas para fora do meu mundo sem querer
analiso introspectivo este novo estado de coisas
aí fora a felicidade queima rápido, mas se esgota
aqui dentro nasce um rio vagaroso, mas eterno

o mundo caduca lentamente nos jornais
pros místicos se anuncia um julgamento coletivo
nos ombros o mais miserável carrega a grande máquina
nas rugas os mais velhos denunciam as ilusões

nos sambas todos os amores começam e terminam
todas as esperanças desaguam em terra infértil
todas as sementes se perdem sem colheita
mas todos os poetas sempre choram rosas

chorando rosas para o povo sigo em cinzas
na quarta-feira derradeira que anuncia o novo mundo
de ombros e olhos leves para pintar o futuro
sem os olhos rasos d'água por amores de papel.