quarta-feira, 19 de abril de 2017

Egresso

dedos miúdos, finos, lisos
dedos de apalpar nuvens
dedos de acariciar rostos
dedos de cortar o rio
dedos de citar Bandeira

e desenhar a partida

dedos que viram a página
que escorrem sangue na próxima
sangue que escorre na carta
sangue que faz o poema

que empossa nos olhos
e deixa o gosto na boca.

não adianta
essa coisa não dá em pedra
de repente, a cólera
abunda na veia
coração é flor que embota e
faz a vida soprar miúda

essa coisa não dá em pedra

a literatura forjou seus fracassos
afogou suas melhores horas de amor

acordas as seis, se lava,
caminhas, se pendura num trem
e vendes 1/3 do teu dia pra um patrão
achas que vai acordar apaixonado amanhã?

teu relógio te embrutece,
essas coisas não dão em pedra.

não vais se apaixonar amanhã
comprarás um apartamento
o carro, os móveis, os cães...
comida japonesa e retratos de família.
e o amor romântico não virá
estará preso na presidente vargas
cinco horas da tarde

enquanto espera virarás pedra,
perderás flores, ganharás limo
e então te voltarás
à tua tenra infância em Rio D'Ouro
das horas que o amor não bastou
e acabou oculto no fundo do rio

poetas do Recife antigo
figuras da baixada de sempre
palavras, garrafas, gargalhadas
na mesma órbita dos caça-niqueis

e do amor legítimo
que não mora no teu peito egresso
mas nas coisas.

Rio D'Ouro
da água que empossa nos olhos
que traz o poema pra boca
que trata a ferida no dedo
no dedo ferido há décadas.

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