segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

As confissões do sonhador

Às seis da manhã o céu era algodão.

Do pico de uma montanha a outra, tudo era branco. Entre elas, num tímido esplendor os primeiros raios de sol ganhavam seu espaço. Era vermelho, amarelo, laranja, azul, lilás e outras cores que eu não sei nomear. Elas enchiam os olhos do sonhador.

Daquele ponto a visão era majestosa. A Rua Berlim, a rua mais alta do bairro e com certeza a mais fria da cidade também. Ela agradecia àquela benção aos pés da serra. E ele só observava, contemplava a inusitada beleza daquele lugar. Aquelas sarjetas sujas nunca foram tão belas. Sim, eram sarjetas belas. A beleza nunca foi tão simples, tão crua, tão triste. Com aquele céu tudo era simples, cru e triste.

Da Rua Berlim até a casa em que passaria o dia, eram quatro ruas com nomes de cidades européias, elas nunca foram tão longas, tão solitárias, e principalmente, ninguém pensaria tanta coisa naquele trajeto. Nunca mais. Mas era um dia diferente, um momento diferente: seis horas e quatro minutos de um novo ano, e havia a companhia de um cão.

“Estou só” – pensou. A frase dizia mais do que fato de a rua estar quase vazia, tendo apenas ele e o cão como transeuntes. Naquele momento a cidade era cinzas, o mundo era barro, as pessoas fumaça, os prédios gigantes petrificados e o sol começava a misturar tudo. Os únicos seres eram ele e o cão provando o céu. Ah, aquele céu! Ele o adorava, mas odiava seu gosto. Tinha o gosto do nome dela. Ele quase o gritava a cada vez que olhava o céu. Seu grito rasgaria acres e acres de rua vazia e voltaria a seus ouvidos, dilacerando sua mente na solidão dos ecos. Mas não houve grito, nem eco, nem rua rasgada ou mente dilacerada. As palavras nasciam nos pulmões, cresciam na garganta e morriam na ponta da língua, deixando apenas o movimento labial que o cão parecia entender. Uma situação perigosamente aflitiva.

A SITUAÇÃO
O céu o matava, as ruas se agigantavam,
e ele estava na terapia ao ar livre de um cão vira-lata,
mas não estava louco.

Como pode um rosto fazer tanta falta?
Como pode alguém anular um mundo e ir embora?
Ela nunca tinha sido tão importante para alguém. Era a coisa mais importante no mundo para ele naquele momento.

O que mais poderia se levantar e o apoiar naquele momento? Nada, é a resposta. Nada além da imagem dela, da voz dela, do olhar dela. Ele não tinha nada disso. Ela não iria emergir do chão para mantê-lo de pé. “Eu preciso desmoronar” – pensou então. E o cão o fitou, fez a leitura telepática da frase, latiu como se tivesse entendido e farejou uma solução no chão. Achou uma flor ressecada e a carregou na boca pelo resto do caminho e continuou ler-lhe o pensamento.

Mais uma rua e antes que a solidão chegasse a níveis críticos de confusão de identidade, eis que vem ela: a última esquina. Ao passar por lá viu dois bêbados, dois loucos ainda comemorando a entrada do ano. Não era muito civilizado ou poético, mas foi aquela visão que lhe mostrou que a humanidade ainda estava lá, viva, entorpecida, louca e plena. Pronta para ele. Dalí até em casa não trocou mais nenhum pensamento com o cão, o céu já era todo claro, azul e com nuvens de algodão costuradas nele. Agora o algodão era doce. Ele sentia que a vida tinha uma nova face, sentia que não precisava dela para se apoiar. Precisava sim, de um novo amanhecer e de um novo sonho para viver.

Ao chegar ao portão manchado de vinho, abriu e entrou num só movimento. Seu companheiro canino tentou entrar também, ele o fitou nos olhos com imensa sinceridade e disse: – “Não, meu amigo. Obrigado!” – dessa vez a voz saiu, o cão entendeu mas havia mais coisas a dizer. E então ele pensou: – “Vá e leve meu delírio. Leve minhas memórias e minha amizade. E não conte a ninguém”.

UMA ÚLTIMA IRONIA
Naquela semana o sonhador não sonhou.
O sonhador não sonhou.
Tinha medo do novo sonho que viveria.

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