sábado, 25 de junho de 2016

Alicerce

Vinha como quem desce o Cruzeiro
pensativo porém de aparência confiante,
medo não sentia da noite porque
a treva tranquila do outono e
o vento álgido que despe
a lua das nuvens que veste
são hediondos mas não letais.

sobre questão me debruçaria
se não tivesse de andar,
mas se questão não é importante
a esta hora, quê mais será?
nos ladrilhos deitar-me-ei,
porquê não?
e me deleitarei do meu reinado
na ladeira de pedra,
já que os carros
não sobem o Cruzeiro
as três da manhã.

e daqui revelarei os mistérios
pra além dos pomposos
prédios de mármore
das rua do centro dessa cidade,
que cresce pra cima
levando os de cima,
enquanto concreta
os de baixo na liga
do alicerce.

me agarrarei numa
realidade não palpável,
na real, uma patética tentativa
de metafísica
do proletário bêbado
que vos fala a esta hora,
que não quer mais ser alicerce
de filho-da-puta nenhum,

por quê das flores que nascerão
no meu engenho,
não terei tempo de colher nenhuma,
e das vinícolas todas
de pau maciço
não tocarei num barril.

mas saibas que,

destas begônias inteiras que desabrocham,
dos hibiscos e até dos girassóis,
que não coexistiriam se fosse
por conta de gente que não sabe de jardinagem,
de todas essas flores
tenho ciência e poder,
e tenho também coletiva
consciência de colheita,
pra que todos tenhamos lírios
na janela da cozinha
das nossas mães
e rosas nos cabelos crespos de nossas mulheres.

por que eu governo tudo o que vejo
do auto da ladeira ladrilhada do Cruzeiro.
ladrilhada por mim mesmo,
de passagem devo dizer.
e não é só um florilégio de palavras
que você nunca viu
que me garantem este reino vil,
cheio de alicerces e espigões,
cheio de martelos e pregos,
cheio de ratos e gaviões.
é o próprio e verídico
causo que conto,
eu com minhas próprias mãos
construí esta cidade média
que demanda ser grande.

se não acredita,
olha em volta o que é feito de pedra
e aço, areia, cerâmica e cimento.
tudo está junto e em pé no esquadro correto
e iluminado pela mão do operário civil,

obra de todos os Severinos e Josés,
de todas as Marias, que trocam
flores por rugas,
e denunciam a solidão.

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