quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Pranto de poeta

Realmente,
a rua não é lugar de poesia
quando a calçada sangra na pauta.

É nas sarjetas improváveis da Baixada
que há tristeza,
nas praças, nos parques
e construções abandonadas,
garimpa-se beleza
as vezes ela mesma nos acha.

Quem pode ver?
é uma pedra sem gosto
nas ruínas do progresso,
lavada de sangue negro
e óleo preto de carro
brilhando decadente no asfalto quente.

São estrelas bordadas no papel
pela mão esquerda do poeta,
e como dói o fedor dessa atmosfera.
respira-se o ar, sente-se o fel,
a náusea logo vai chegar,
a mão direita vai tremer de horror
mas é mesmo a esquerda que sangra melhor a caneta.

É duro garimpar na Baixada
e tem vezes ainda, que o poeta descobre
que no concreto não há nada,
nem prata, nem ouro, nem cobre
e que a fétida putrefação tem endereço,
tem classe, sempre é pobre.

Eu compreendo o poeta que deixou de navegar
enganado neste céu estéril sem estrelas
já sem encontrar razão pra caneta,
notou que na Baixada não tem horizonte
e que a cidade é uma prisão de concreto
para seres humanos livres

Passem longe soldados e carros da polícia,
e passem longe cidadãos e celulares,
a multidão alucinada do século,
passem longe vencedores e populares.
um poeta sucumbiu,
se arquejou, lamentou, se esvaiu.
soltou um grito de dor, ninguém ouviu
e a massa logo seguiu o fluxo diário do caos.
pisando pra lá e pra cá, sem notar
que no asfalto é a beleza que escorre
e o medo da noite fria vai me acordar
pois toda vez que anoitece um poeta morre.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Bem-vindo à máquina

O primeiro passo
de um conjunto de passos caóticos.
preso ao labirinto
e as tendências da cidade.
há quem diga que este tempo
empobrece o homem,
eu não discordo,
mas quem sou eu?
quem é tu?
preso a esta lógica
por uma conta bancária,
todos os homens podem ir
aonde quiserem,
mas todos vão ao trabalho.
voltam trazendo dinheiro e ferrugem,
se tornam menos livres,
mas podem ter celulares.

cansado, não olho o relógio
que esquenta e me queima o pulso
o sol me diz que são meio dia
minha pele e o concreto
derretem e se misturam,
expondo a feiura do homem e da rua,
impregnada nos ossos e nas vigas.
comprei muitas coisas
mas não vivo melhor,
algumas me parecem bonitas,
as ostento no pulso,
são pequenas mentiras
que eu me permito contar.

preto e comunista,
não fui bem-vindo
quando cheguei à máquina.
causei uma disfunção,
fui reprimido.
hoje me olham com olhos
de fera ferida,
mas as íris não brilham.
o espírito do progresso está caduco
e todos os olhos têm cataratas.

sou o câncer e a flor,
e alimento esse fogo no coração dos pequenos
ando caótico, pobre e cansado
mas ainda sou a juventude do mundo.
contradigo o rumo da história.
ao filho do beco, da caixa de ferramentas,
do Morro da Mangueira
a palmatória não foi
o único professor na vida.
e da maternidade ao cemitério
o tempo é o chão de fábrica,

"Olá, meu filho!
bem-vindo à máquina".

Vadio

Meu coração é um vadio sem rumo
cambaleando pelas calçadas do mundo,
vivendo a ilusão da velha boemia,
por vadiagem, por ilusão de alegria

volto a dizer que meu coração é vadio.
morrendo de amores, vivendo no frio,
tropicando nas próprias distrações,
dilacerando outros corações

neste peito que não é vazio carrego
as dores da vida que eu não nego,
todos os sonhos quebrados ainda vivem
moribundos, neste peito vadio resistem

meu coração vagabundo sangra e rabisca estes versos
nas minhas cordas de aço conquisto o universo,
me ponho a cantar poesia pra tudo que existe
mas na madrugada amarga todos os sambas são tristes.

então caneta me samba nos dedos anunciando a desgraça
quando me vejo no espelho soprando a vida e a fumaça.
em tristeza e a abandono minha vida não pode acabar
pois meu coração vadio continua a sonhar.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

meus pés, suas asas.

Um cigarro entre os dedos
vai me queimando a alma,
os insumos vão cozendo
enquanto eu espero.
as teias das aranhas
se separam da parede
e cada vez mais 
se parecem com a minha pele.
coço a nuca algumas vezes,
no peito o suor brota nos poros, 
respiro devagar, mas respiro.
meus olhos fixos na fumaça
capturam um eco distante dentro do peito.
são os resquícios de um som que nunca existiu,

ele nasce nas entranhas,
ele ganha os pulmões,
ele rasga a garganta,
ele morre na ponta da língua, toda vez.

suas palavras ficam sempre
ecoando entre o passado
e a eternidade,
sem nunca ser presente.

da fumaça ainda capturo
nicotina e algumas dores.
posso sentir cada ferida
que meus pulmões vão ter
esfaqueados pelas palavras não ditas
mesmo assim não me arrependo
do que ainda vivo.
a este rapaz fora de órbita
chamam viciado em tristeza.
mas se posso defender-me
digo que a tristeza é o melhor de mim.
torna minha alma íntegra,
me adestra a escrita
e garante que meus olhos
só brilhem por genuína alegria.

e àquela suave menina
dos braços grandes e mãos miúdas,
de flor no cabelo e no sorriso
meus olhos brilham com gosto,
pois faz dos meus dias mais leves.

sob seu corpo pesado
e seus gritos de prazer
que me mastigam o juízo
há ainda algum sentido pro voo.
mas a leveza não é de mim
e não sei até quando voar me será fácil.
sou um instinto e um sentimento
disputando o movimento
e o caminho do próximo passo,
pois com os pés sou mais livre 
do que com as asas.

não tenho acordos com o vento
nem mesmo com o chão de pedras
onde ainda tropeço,

já caminho como homem
mas ainda engatinho 
como poeta e como amante

e se te alegra saber dos meus dilemas
adormecerei sob tecido frio esta noite,
mas antes pensarei do calor dos teus olhos.