domingo, 30 de novembro de 2014

do que adianta?

não me basta desconstruir a mim mesmo
que sou feito de arame e concreto
afim de fazer pontes leves
de madeira virgem e corda,
e flores da mata trepadas nos nós,
enroscando nas mãos.

não me basta depois de fazer estas pontes
trazer pessoas para este lado
e vê-las fazendo pontes umas com as outras,
e vê-las misturar-se em suas cores, e crenças,
e gêneros, e amores, e veias, e ossos e sangue
por notar que sem os muros e com as pontes
há uma única coisa em comum, 
uma unica coisa que importa:
amanhã morreremos do mesmo mal
no Japeri lotado à Central.

e não me basta que essa multidão que tem meu rosto
filhos dos trilhos e do aço, 
e da inchada, e da foice, do martelo e da caneta.
não me basta que estes saiam derrubando muros como eu,
muros de miséria, desprezo, ódio e exploração
e quem sabe um dia, ah num belo dia
derrubemos muros de concreto
que separam o cidadão da cidade.

não me basta que, por um dia
o sol e a lua tirassem folga
e que as estrelas caíssem do céu,
e que o nosso sangue derramado 
pela profundidade da história adentro
tingissem a tela azul do infinito
brindando a unica estrela que resta
só pra nos lembrar que somos um só
em toda parte.

e neste chão que sempre foi nosso
encharcado pelo coração 
vermelho dos nossos mártires
triunfemos absolutos.

já não me basta, e nenhuma certeza absurda
de justiça me bastará,
se não conseguires te mover em direção à vida,
se em teus olhos não há utopia,
se em teu horizonte não há esperança.
neste caso,
meu irmão, minha irmã,
eu lhes pergunto: 
do que minha ponte adianta?

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Sobre Atom Heart Mother

No começo tudo era silêncio
antes mesmo da escuridão
e então fez-se o sopro,
o arco, as cordas.
se fez o metal.

me posiciono no mesmo barco
no mesmo rio,
mas é outro tempo.
eu passei
a água passou

ouço o grito do pai
mas não há nada de sagrado,
sua voz é rouca
seu timbre é forte
seu coração é distorcido,

um órgão soa ao fundo.

e fez-se o céu
na cor dos olhos daquela criança.
era verão.

e fez-se a terra
encharcada de sangue, vermelha como meus olhos.

Os anjos em coro falam sua própria língua
e aquele órgão continua a soar.

o tempo é belo e eterno.
passa a vida
passa o homem
passa a água
passa a ponte
fica o tempo
medido na corrida incessante
do ponteiro
que persegue o próprio rabo
eternidade a dentro.

passa a pilha
e o relógio,
passam os anjos,
o pai, a mãe e o filho

não importa que horas são
é tempo de desjejum:
"chá, torrada, café,
salsicha. Rosbife"

é tempo de pensar canções
e cantar filosofias.

o pai grita outra vez
'controlem as suas gargantas' - eu posso ouvir.

os anjos param.

o silêncio é perturbador e cresce,
alguns se atrevem, projetam a voz,
o som do metal os atinge.
os anjos caem no abismo.

o silêncio se faz novamente
no seio rebelde dos anjos.
na mente maldosa da gente
se faz a necessidade de cantar.

se faz também a guerra e a morte,
feito pra nós e por nós
pois é nossa culpa.

se faz o caos
se faz a caneta
se faz a poesia
tudo se funde num mesmo impasse.

no fim
tudo passa.
passa o homem
passa o rio
passa o pai.
fica o tempo
e sua transitoriedade.